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TCD2 013 - PROJETO
UNICAMPO:
DA EXPERIÊNCIA PRESENCIAL A UM PLANO DE
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Márcio de Matos Caniello
UFCG / Coordenação de Educação a Distância
caniello@ch.ufcg.edu.br
Natureza: Descrição de Projeto em Andamento
Tema: Educação a Distância
nos Sistemas Educacionais
Categoria: Educação Universitária
Resumo:
Com a implantação de um campus avançado no Cariri
paraibano, micro-região encravada na "diagonal seca"
do semi-árido brasileiro, a Universidade Federal de Campina Grande
(UFCG) inaugurou o processo de criação de uma Universidade
Camponesa no Brasil através da implementação do Projeto
UniCampo, cuja experiência piloto consistiu no oferecimento de um
curso de extensão em desenvolvimento local sustentável para
30 jovens camponeses oriundos de 20 municípios daquela micro-região
entre os meses de setembro e dezembro de 2003. Baseando-se nos ensinamentos
que essa experiência inaugural proporcionou à equipe pedagógica
e projetando sua continuidade, difusão e expansão, esta
comunicação visa apresentar os resultados da experiência,
problematizando-os no sentido de contextualizar elementos que poderão
contribuir para a resolução de impasses e para a superação
de desafios, inserindo o Projeto num plano de educação a
distância.
Palavras-chaves: Universidade Camponesa; Desenvolvimento
Sustentável do Semi-Árido; Educação popular.
Este texto será apresentado no 2º Seminário Nacional
da Associação Brasileira de Educação a Distância
a ser realizado em Campo Grande (MS) entre 5 e 6 de abril de 2004.
1. Introdução
A idéia de se implantar uma “Universidade Camponesa”
(UC) no Brasil surgiu no ano de 2000 a partir do interesse da CONTAG em
formar os seus quadros com o suporte da universidade e da cooperação
internacional, tomando-se como modelo a experiência da Université
Paysanne Africaine (Cf. Upafa, s/d). Embora as conversações
tenham evoluído bastante, a UC não chegou a ser implementada
neste primeiro momento, mas durante a realização do Seminário
Internacional Sociedades e Territórios no Semi-Árido Brasileiro:
em busca da sustentabilidade, realizado na Universidade Federal de Campina
Grande (UFCG) em dezembro de 2002, a idéia ressurgiu num debate
entre professores e pesquisadores da UFCG, da UFPE e do CIRAD, entidade
co-promotora do evento. A partir de então, formou-se uma “rede”
destinada a congregar as mais diversas iniciativas de formação
e capacitação dos atores sociais vinculados à agricultura
familiar no Brasil, cuja meta é preparar estes sujeitos para atuarem
na definição e implementação de ações
e políticas públicas voltadas para o desenvolvimento local
sustentável, especialmente aquelas dirigidas para a fixação
do homem no campo.
Foi neste contexto que surgiu o Projeto UniCampo (Cf. Caniello, Tonneau,
Leal e Lima, 2003), iniciativa do Grupo de Pesquisa Desenvolvimento Sustentável
do Semi-Árido (GPDSA), apoiada pela UFCG através da Pró-Reitoria
de Extensão, da Coordenação de Educação
a Distância (CEAD), do Programa de Estudos e Ações
para o Semi-Árido (PEASA) e do Programa de Pós-Graduação
em Sociologia (PPGS). O Projeto teve como parceiros o Centre de Coopération
Internationale em Recherche Agronomique pour le Développment (CIRAD),
o Projeto Dom Helder Câmara (MDA/FIDA), a Escola Agrotécnica
de Sumé (EAS) e o Centro Caririzense de Educação,
Pesquisa e Assessoria Sócio-Ambiental (CCEPASA), contando ainda
com a colaboração da Fundação Parque Tecnológico
da Paraíba e da Secretaria de Educação do Município
de Sumé.
Tendo como objetivo principal inaugurar um programa de educação
universitária de acordo com os preceitos da UC, o Projeto recuperou
a idéia de que a implantação de campi avançados
pelas Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) é
uma excelente estratégia para fomentar a interação
entre a universidade e a sociedade, na medida em que, ao estender sua
estrutura institucional aos locais em que estão as pessoas que
não têm acesso a ela, a universidade pública brasileira
a um só tempo impulsiona sua própria expansão, movimento
necessário e urgente para a real democratização de
seus produtos e processos, e amplia sua capacidade de promover a inclusão
social, sua missão mais fundamental.
Neste sentido, durante o último trimestre de 2003, o Projeto UniCampo
iniciou suas atividades com o desenvolvimento de uma experiência
piloto que consistiu na instalação de um campus avançado
da UFCG na Escola Agrotécnica de Sumé, cidade situada a
130 km de Campina Grande, onde foi realizado um Curso de Extensão
em Desenvolvimento Local Sustentável durante em dez finais de semana
consecutivos.
Baseando-se nos ensinamentos que essa experiência inaugural proporcionou
à equipe pedagógica e projetando sua continuidade, difusão
e expansão, esta comunicação visa apresentar os resultados
da experiência, problematizando-os no sentido de contextualizar
elementos que poderão contribuir para a resolução
de impasses e para a superação de desafios, inserindo o
Projeto num plano de educação a distância.
2. Contextualização
O meio rural é um local desafiador para o ensino universitário.
Por um lado, é um espaço no qual a universidade encontra
dificuldades para se inserir e, por outro lado, abriga populações
fortemente marginalizadas. No âmbito da realidade nordestina, especialmente
para a massa de camponeses que habitam sua extensa região semi-árida,
esse duplo dilema atinge seu paroxismo: os jovens rurícolas têm
dificuldades de toda ordem para chegarem às universidades implantadas
nos grandes centros urbanos, as quais, malgrado o processo de pesquisa
sobre o desenvolvimento que implementam, também encontram muitos
entraves para difundi-lo para os principais interessados.
De fato, ainda que atualmente haja pesquisas técnico-científicas,
políticas públicas e ações de organizações
civis voltadas para o fomento da agricultura familiar no Brasil, a disseminação
dessas iniciativas entre os principais interessados é limitada
em virtude, fundamentalmente, da falta de um espaço de intercâmbio
de experiências entre os agricultores familiares e suas lideranças
com cientistas, professores, técnicos, organizações,
instituições e demais agentes devotados à reflexão,
à elaboração e à implementação
de políticas e ações para o desenvolvimento rural
sustentável.
Foi para intervir nesse impasse que propusemos a construção
de um fórum que contribuísse para a elaboração
e consolidação de um verdadeiro projeto de desenvolvimento
sustentável não só para a Paraíba, mas para
o Brasil, contemplando as políticas públicas para o setor,
baseando-o na interação entre as perspectivas, interesses
e projetos dos agricultores familiares e de suas organizações
com o referencial teórico, analítico e prático das
disciplinas universitárias.
Neste sentido, o Projeto UniCampo objetiva oferecer aos jovens camponeses
do semi-árido paraibano – e também aos menos jovens
– uma oportunidade de desenvolvimento social através de sua
participação nas ações típicas da universidade:
ensino, pesquisa e extensão. Metodologicamente, o projeto caracteriza-se
pela promoção de uma interação crítica
e positiva entre os “saberes e fazeres” dos agricultores familiares,
do seu modo de vida, da sua identidade e da sua tradição,
com o conhecimento e as inovações advindas do progresso
da ciência e da técnica. A principal meta é contribuir
para que os camponeses nordestinos – produtores familiares, trabalhadores
rurais, assentados da reforma agrária e seus filhos – desenvolvam
suas capacidades para que possam, efetivamente, constituírem-se
como agentes do seu próprio destino.
3. O Projeto UniCampo
3.1. Princípios
O Projeto UniCampo tem como compromisso primordial contribuir para o
desenvolvimento rural sustentável, promovendo uma agricultura familiar
autônoma através do cultivo de um “capital cultural”
que articule, por um lado, o resgate do ethos camponês entendido
como base da identidade, fonte da auto-estima e vetor da autodeterminação
dos agricultores familiares (Cf. Caniello, 1991), e, por outro lado, uma
formação voltada para as necessidades e interesses desses
atores sociais. Este processo deve ser construído por intermédio
da difusão e crítica da informação sobre a
produção técnico-científica, as políticas
públicas e as ações devotadas ao fomento da agricultura
familiar e por meio do debate sobre processos produtivos, de gestão
e organização social apropriados às suas peculiaridades
culturais, sociais, políticas, econômicas e ambientais.
Nesse sentido, o primeiro princípio norteador do Projeto UniCampo
é o fomento de um modelo de desenvolvimento rural baseado nos preceitos
da sustentabilidade (Cf. Brüseke, 1995; Romeiro, 1998), isto é,
uma estratégia para a promoção da melhoria de vida
das populações atuais pautada pela reflexão sobre
as gerações futuras, em que estão concatenados desenvolvimento
econômico, desenvolvimento humano e responsabilidade ambiental (Cf.
Almeida & Navarro, 1996; Paschoal, 1995).
O segundo princípio norteador da Universidade Camponesa é
a consideração dos agricultores familiares como portadores
de uma identidade própria, definida por uma cultura, uma economia
e um modo de vida não capitalistas (Cf. Chayanov, 1966; Wolf, 1970;
Mendras, 1978). Daí, sua “marginalidade” histórica
num sistema econômico cuja hegemonia pontua para a maximização
do lucro, a ampliação do consumo e a mercantilização
da terra e do trabalho (Cf. Lênin, 1982; Kautsky, 1980; Abramovay,
1992; Moura, 1986).
A forma de articular esses dois princípios básicos no processo
de formação é radicalizar a noção de
agricultura familiar, desenvolvendo um modelo produtivo adequado ao modo
de vida dos camponeses, ao território que eles habitam e às
necessidades impostas pelo sistema econômico inclusivo. É
um modelo produtivo diversificado que privilegia o trabalho e sua remuneração
e que respeita e se adapta aos fatores naturais, biológicos, meteorológicos
e culturais, inserindo os produtores, os consumidores e a natureza num
projeto social renovado. Nesse sentido, propõe-se uma agricultura
com baixo consumo de insumos comerciais e alto investimento em trabalho
e em tecnologias apropriadas, capaz de manter um nível de emprego
rural elevado e assim evitar o crescimento dos desequilíbrios territoriais
e sociais ligados à urbanização. Dessa forma, ela
pode ser concorrencial economicamente – para garantir a segurança
alimentar das populações rurais, via autoconsumo, e também
das populações carentes das cidades – mais eficaz
na gestão dos recursos naturais e mais justa socialmente.
O terceiro princípio norteador do Projeto é que, para implementar
as medidas necessárias para o desenvolvimento local sustentável
tal como preconizam os dois princípios citados acima, os atores
sociais necessitam se engajar em “processos de ação
coletiva” construídos por eles próprios tal como várias
experiências estudadas no semi-árido nordestino (Cf. Sabourin,
2001; Lazaretti, 2000; Diniz, 2002). Para tanto, torna-se necessário
que eles desenvolvam suas capacidades individuais e coletivas de organização,
mobilização e gestão, temas que entraram no debate
proposto.
Portanto, é um processo de aprendizagem pautado no resgate do ethos
camponês, na construção de um modelo técnico
apropriado à agricultura familiar e no estímulo à
ação coletiva para atingir o desenvolvimento sustentável
que o Projeto UniCampo quer acompanhar e favorecer.
3.2. Objetivos
Em resumo, os objetivos do Projeto UniCampo são construir um processo
pedagógico destinado a desenvolver o “capital cultural”
dos atores sociais engajados na agricultura familiar no semi-árido
brasileiro – especialmente a juventude rural –, estimulando
o potencial reflexivo, criativo, técnico e organizativo desses
sujeitos, de maneira que eles possam responder ativamente às suas
necessidades políticas, técnicas e institucionais para o
desenvolvimento sustentável, especialmente na definição
e implementação de políticas públicas.
Para atingir estes objetivos, se propõe:
1. Oferecer uma formação básica em Humanidades como
estratégia para a construção de uma visão
crítica da realidade e de um instrumental de pesquisa social aplicada;
2. Desenvolver a capacitação em tecnologias apropriadas,
articulando o saber local e as inovações científicas;
3. Desenvolver capacidades organizativas e de gestão (gerenciamento
da unidade produtiva familiar, associativismo, cooperativismo e questões
de organização social e mobilização política)
4. Estimular a construção de projetos de desenvolvimento
local e apoiar sua implementação;
5. Promover a interação entre os atores sociais envolvidos
na agricultura familiar e a comunidade técnico-científica;
6. Constituir-se num fórum permanente de reflexão participativa,
interativa e crítica sobre os processos de desenvolvimento no Brasil
e as políticas públicas a eles relacionadas;
7. Constituir-se num meio de difusão de conhecimento técnico-científico,
das políticas públicas e de ações voltadas
para o desenvolvimento local sustentável no Brasil.
3.3. Projeto político-pedagógico
Como uma proposta mobilizadora calcada na recuperação e
no cultivo das potencialidades do ethos camponês e na promoção
de sua interação com o saber técnico-científico
universitário, o Projeto UniCampo buscou uma perspectiva político-pedagógica
criativa, inovadora e filosoficamente revolucionária. Neste sentido,
o pensamento de Paulo Freire mostrou-se como o que melhor responde a essas
necessidades, principalmente porque sua pedagogia se apresenta não
como um “manual ortopédico” sobre “como ensinar”,
mas como um processo pedagógico, cuja preocupação
epistemológica fundamental consiste em saber “o que significa
conhecer” (Silva, 1999), respeitando as particularidades daqueles
envolvidos nesse processo e enxergando a educação como meio
indispensável à “mudança de uma sociedade de
oprimidos para uma sociedade de iguais” (Gadotti, 1979, p.10).
Como um modelo diferente das metodologias tradicionais que consistem ainda
hoje em limitar o pedagógico à sala de aula e à relação
hierarquizada de poder/saber entre professor e aluno, o método
de Paulo Freire faz nascer um pensamento pedagógico que conduz
o educador a engajar-se social, cultural e politicamente na luta pela
transformação de estruturas que sejam consideradas opressivas
pelos sujeitos nelas inseridos (Cf. Gadotti, 1979: 10).
Assim, no que diz respeito ao modo como o conhecimento é construído,
salienta-se a necessária atenção ao “capital
cultural” existente, o qual é continuamente produzido no
espaço pedagógico. O conhecimento, nessa perspectiva, não
“aparece” importado de uma fonte universitária, cujo
veículo seria o professor, mas produz-se continuamente como resultado
da interface entre o saber já consolidado, que é re-significado
a cada encontro pedagógico, e o saber que se produz.
Sob essa perspectiva, o professor deve “saber que ensinar não
é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua
própria produção ou a sua construção”
(Freire, 1999: 52). É a substituição de um modelo
fundamentado na “educação bancária” por
uma metodologia alternativa denominada de “educação
problematizadora” (Cf. Freire, 1975), modelo que se pauta numa perspectiva
fenomenológica, para a qual não se separa, no processo de
conhecimento, o ato de conhecer daquilo que se conhece, estando implicado
nesse ato a presentificação do mundo para a consciência,
que, para Freire, não é nunca um ato isolado e individual,
mas intercomunicativo e intersubjetivo. Na perspectiva da educação
problematizadora, o mundo não é simplesmente “comunicado”,
mas educador e educandos produzem, através do diálogo, um
conhecimento do mundo (Silva, 1999).
Quanto aos conteúdos curriculares, Freire desenvolveu uma importante
premissa: o conceito de temas significativos ou temas geradores, que vão
se constituir como a base dos conteúdos programáticos, para
a elaboração dos quais não se dispensa o papel dos
especialistas, mas o currículo é sempre fruto de uma pesquisa
da experiência dos próprios educandos, que participam ativamente
desse processo. Nessa perspectiva foram definidas 7 questões-motivo
que movimentam todo o processo pedagógico:
1. Quem somos?
2. O que temos?
3. Como usamos o que temos?
4. Como potencializar o uso do que temos?
5. Qual é o nosso projeto?
6. Como nos organizarmos para implementar o projeto?
7. O que fazer para colocarmos o projeto em prática?
É conveniente ressaltar, finalmente, que o cerne de todo esse
movimento, que ganha corpo no Projeto UniCampo, parte do pressuposto de
que a Universidade Camponesa nasce com a proposta de “escutar”
os mais diversos sujeitos envolvidos em projetos de desenvolvimento local
sustentável para a partir dessa “escuta” traçar,
de modo mais sintonizado com essa produção, seus caminhos.
4. O Curso de Extensão em Desenvolvimento Local Sustentável
4.1. A experiência
A experiência piloto do Projeto UniCampo foi implementada no Campus
Avançado da UFCG nas dependências Escola Agrotécnica
de Ensino Fundamental de Sumé, município situado no “centro
geográfico” do Cariri paraibano, através do oferecimento
de um Curso de Extensão em Desenvolvimento Local Sustentável
para 30 alunos oriundos de 20 municípios da micro-região.
A escolha do Cariri paraibano como locus da primeira ação
do Projeto UniCampo deveu-se a vários fatores. Em primeiro lugar
porque esta microrregião está encravada em plena “diagonal
seca”, onde se observam os menores índices de precipitação
pluviométrica do semi-árido brasileiro (Cf. Cohen &
Duque, 2001: 48); em segundo lugar, porque “os produtores agropecuários
ainda representam os principais atores econômicos do Cariri, apesar
da crise do setor”, congregando 70% da população economicamente
ativa, com forte presença de agricultores familiares (Cf. Bazin,
2003: 19); em terceiro lugar, porque a microrregião tem baixos
índices de desenvolvimento econômico e humano, com destacada
carência no setor educacional (Cf. Bazin, 2003: 48-52); em quarto
lugar, porque a Escola Agrotécnica de Sumé, cuja experiência
educacional é extremamente interessante (Cf. Caniello, 2001: 23-25),
tem uma excelente infra-estrutura para comportar o campus avançado.
O Público-alvo foi composto por jovens camponeses com capacidade
de liderança, vontade de progredir através dos estudos,
com potencial de disseminação dos conhecimentos adquiridos
e que tenham como opção de vida permanecer na região
e trabalhar por seu desenvolvimento sustentável. O objetivo é
formá-los como agentes de desenvolvimento sustentável.
Durante 10 fins de semanas, entre 27 de setembro e 7 de dezembro de 2003,
30 educandos participaram de um curso de extensão de 120 horas/aula,
cujo currículo consistiu de três módulos de formação,
um módulo de síntese e três oficinas.
O módulo de formação humanística foi centrado
na definição da identidade camponesa a partir de quatro
perspectivas: arqueológica (a revolução agrícola
– ou neolítica – como origem da civilização
moderna), antropológica (o campesinato como um modo de vida), histórica
(a formação do campesinato brasileiro e o povoamento do
Cariri) e sociológica (os camponeses e seus dilemas frente ao capitalismo
e à "modernidade").
O módulo de formação técnica tratou fundamentalmente
dos recursos do Cariri paraibano, seus usos e potencialidades (com a elaboração
participativa de um zoneamento agro-ecológico) e da questão
camponesa em face do desenvolvimento sustentável e das políticas
públicas.
O módulo de formação social abordou temáticas
como associativismo, cooperativismo e ação coletiva; o papel
das lideranças para o desenvolvimento sustentável; a modernização
e as tecnologias adaptadas ao Cariri (com um dia de campo dedicado à
observação de experiências bem sucedidas).
Além dos conteúdos curriculares, foram promovidas oficinas
de cordel, papel reciclado e xilogravura para que fossem estimuladas atividades
que desenvolvessem o potencial artístico-cultural dos educandos,
com três objetivos: estimular a ação criativa como
estratégia pedagógica e meio de resgatar a identidade e
a auto-estima; produzir materiais didáticos desenvolvidos interativamente,
como o “jogo do cariri”, forma lúdica de produção
de conhecimento local, que se destina a fixar e difundir os conhecimentos
adquiridos para além dos processos presenciais; e demonstrar a
potencialidade econômica da produção cultural (emprego
e renda) no âmbito da “pluriatividade”, que deve caracterizar
o desenvolvimento local sustentável.
O módulo de síntese resultou na conclusão de que
o desenvolvimento do Cariri deverá ser fundamentado, por um lado,
no resgate da identidade camponesa e, por outro, no fomento a atividades
econômicas essencialmente agrícolas, sendo que a função
produtiva comercial não deverá ser única: a produção
para o auto-consumo, o artesanato, a gestão e conservação
do meio ambiente, a preservação dos valores culturais e
sociais são também tarefas do camponês caririzeiro.
Neste sentido foram definidas as seguintes diretrizes para os projetos
de desenvolvimento local sustentável:
1. Resgate e afirmação da identidade camponesa através
da capacitação de professores do ensino básico (replicação
do curso de extensão);
2. Fomento à economia camponesa através do desenvolvimento
de projetos baseados na produção agropecuária familiar,
propiciando segurança alimentar ao homem do campo e às populações
marginalizadas das cidades;
3. Fomento à cultura camponesa através do desenvolvimento
de projetos em turismo, artesanato e outras produções artísticas;
4. Articulação e mobilização coletiva para
consecução de objetivos e acesso a tecnologias apropriadas
(formação de associações, cooperativas de
crédito, bancos de sementes, consórcios etc).
4.2. A avaliação da experiência
Os trabalhos desenvolvidos ao longo da experiência do Projeto Unicampo
convenceram os participantes de que, malgrado suas extremas vulnerabilidades
ambientais, sociais, políticas e econômicas, o Cariri paraibano,
como tantas outras paragens da região semi-árida mais populosa
do Mundo, é um lugar prenhe de possibilidades de existência
digna para os camponeses. Com efeito, os trabalhos demonstraram a capacidade
coletiva de produção de conhecimentos para melhor se identificar
estas potencialidades e valorizá-las num projeto de desenvolvimento
sustentável.
Depois de dez finais de semana de formação pode-se considerar
que os educandos modificaram profundamente a sua visão em relação
às perspectivas de desenvolvimento sustentável, valorizando
a força da sua identidade, as potencialidades dos recursos naturais
e das experiências locais, percebendo o local como centro do processo
de desenvolvimento.
Nesse sentido, são elucidativos os resultados obtidos através
da aplicação do "teste de associação
de palavras" (Cf. Tura, 1998) realizado por ocasião da abertura
e do módulo de síntese, que tinha como questão a
seguinte pergunta: Quais as três primeiras palavras que lhe vêm
à cabeça quando você pensa no Cariri? As respostas
dadas nos dois momentos demonstram uma significativa modificação
de perspectiva em relação à vida na região:
enquanto na primeira dinâmica de grupo predominaram evocações
negativas (71%), tendo como palavras mais citadas "seca" (17
evocações) e "dificuldades" (9 evocações),
no segundo momento, a situação se inverte (70% das evocações
são positivas), com a prevalência de termos como "persistência"
(6 evocações), "esperança" (5 evocações)
e "cultura" (5 evocações). Mais do que simplesmente
significar a evocação de “novas palavras”, essa
emergência aponta indícios de mudanças de perspectivas
em relação ao Cariri não só como lugar, mas
como espaço de produção de identidade. Aliás,
tais mudanças foram sendo maturadas ao longo do Curso e constatadas
através dos comentários, textos e posições
adotadas pelos educandos durante os encontros.
Além dessa constatação dos resultados acima apontada,
vale ressaltar um depoimento emblemático de uma das alunas na solenidade
de encerramento, registrado no vídeo produzido sobre a experiência.
Levantando-se da mesa redonda em que era uma das expositoras, Auricélia
concluiu sua intervenção dizendo entre lágrimas:
“Se eu nascesse dez vezes, dez vezes eu queria nascer caririzeira”.
5. Perspectivas, desafios e metas para a continuidade do Projeto
UniCampo
Por mais revolucionária e bem sucedida que a experiência
piloto se nos afigure, seu escopo não é suficiente, entretanto,
para desencadear um verdadeiro processo de desenvolvimento sustentável
no semi-árido brasileiro. Como ficou claro nas sessões de
avaliação ao final do Curso de Extensão, o Projeto
UniCampo deverá não apenas consolidar-se no Cariri, como
também expandir sua área de atuação, levando
os produtos e processos da Universidade Camponesa aos quatro cantos do
semi-árido brasileiro.
Por um lado, é necessário que os educandos adquiram as técnicas,
metodologias e práticas necessárias para que eles mesmos
se constituam em sujeitos operacionais e ativos de suas histórias
individuais e coletivas. Ora, durante as sessões de avaliação,
os educandos expressaram o sentimento de obrigação que eles
sentem em relação aos compromissos que doravante têm
em suas comunidades. Manifestaram também o desejo de desenvolver
ações de educação nas escolas e nas comunidades,
ações de desenvolvimento sustentável e de convivência
com a seca, ações de promoção do artesanato.
Nesta perspectiva, perceberam a necessidade da continuidade e ampliação
das atividades do Projeto UniCampo, agora no sentido de proporcionar-lhes,
e também a outros camponeses fixados no semi-árido brasileiro,
instrumentais para assumir tarefas tais como elaboração
de projetos, capacitação técnica em animação
e em administração etc.
Assim, ao final da experiência piloto, a equipe do Projeto Unicampo
tem três desafios a enfrentar:
1. Acompanhar e monitorar os formandos no desempenho de suas novas tarefas
de agentes de desenvolvimento sustentável;
2. Replicar o curso de extensão, uma vez que a experiência
piloto suscitou um apelo muito forte;
3. Elaborar um projeto de curso superior pautado pelas necessidades e
características dos camponeses do semi-árido, consolidando
o propósito de fundação da Universidade Camponesa
no Brasil.
Neste sentido, foram definidas três metas:
1. A longo prazo, o oferecimento de um curso de Bacharelado em Engenharia
do Desenvolvimento Sustentável pela UFCG, com encaminhamento do
projeto ao Conselho Nacional de Educação em novembro de
2004 (Cf. CEAD, 2004);
2. A médio prazo, a replicação do curso de extensão,
que deverá incluir entre o público-alvo professores do ensino
básico (2º Semestre de 2004);
3. A curto prazo, a continuidade da formação da turma pioneira
com dois objetivos principais (a partir de abril de 2004):
a. Desenho, desenvolvimento e gestão de projetos de desenvolvimento
local sustentável;
b. Elaboração participativa do currículo do Bacharelado
e dos materiais didáticos para a replicação do curso
de extensão.
5. O papel da educação a distância para o
futuro do Projeto UniCampo
Em vista das repercussões da experiência piloto, bem como
dos entraves advindos da ênfase no processo pedagógico presencial,
educandos, educadores e parceiros institucionais concluíram que
o Projeto UniCampo precisa ser aperfeiçoado para constituir-se
numa alavanca para o desenvolvimento sustentável do semi-árido
brasileiro. Neste sentido, a educação a distância
surge como o caminho natural da consolidação e ampliação
do processo pedagógico inaugurado com a experiência piloto.
Por um lado, o Projeto Unicampo vai optar pela descentralização
na continuidade da experiência no Cariri paraibano durante o primeiro
semestre de 2004. Os educandos que participaram da primeira experiência
se organizarão em núcleos locais, a partir dos quais serão
realizados trabalhos de animação comunitária e implementação
de projetos de desenvolvimento e consolidação da agricultura
familiar, abordando temas e assuntos como: melhoria das condições
produtivas nos assentamentos, cooperativas de crédito, cadeia produtiva
de leite, educação de base etc.
Estão previstas duas reuniões por mês (e não
quatro, como na experiência piloto): uma reunião geral que
envolverá a equipe de formadores e o conjunto de educandos abordando
temas gerais comuns aos projetos de desenvolvimento, temas teóricos
voltados à elaboração do currículo do Bacharelado
e oficinas de material didático e produção cultural;
e uma reunião setorial em cada núcleo local, conduzida por
tutores (alunos da primeira experiência e professores da região
convidados), a qual congregará os educandos do núcleo e
também todas as pessoas implicadas nos projetos nucleais.
De maneira evidente, estes dois encontros não vão atender
ao conjunto das necessidades de formação e, portanto, vai
ser necessário pensar em um acompanhamento a distância, organizando
o intercâmbio entre a equipe pedagógica e os educandos que
deverá ser ampliada para responder melhor às necessidades
cada vez mais diversificadas. Esse processo contará com o apoio
da Coordenação de Ensino a Distância da UFCG, que
irá desenvolver estratégias de acompanhamento baseadas nas
Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs).
Portanto, projetamos a continuidade da formação em termos
semipresenciais
Por outro lado, quanto ao desafio de ampliar seu escopo para outras regiões
e públicos, especialmente na replicação da experiência
no segundo semestre de 2004, o investimento em educação
a distância será bem mais enfático, embora estejam
previstas ações presenciais. No que tange à difusão
da experiência no Cariri paraibano, particularmente no oferecimento
de cursos para os professores do ensino básico, a equipe pedagógica
do Projeto UniCampo considera como estratégico o uso da tecnologia
revolucionária oferecida pela TV Escola Digital Interativa (Cf.
MEC, 2003), não apenas pela sua configuração institucional
como "instrumento usado para a capacitação de professores
do ensino básico" (Cf. Agência Brasil, 2003), mas sobretudo
porque, como ressalta Frajmund (2003), suas "respostas flexíveis
e personalizadas" fazem com que o processo pedagógico a distância
preserve a máxima de que "a educação é
uma via de duas mãos", princípio filosófico
fundamental do Projeto UniCampo herdado do mestre Paulo Freire.
6. Conclusão
O projeto Unicampo já mostrou os seus efeitos. Enquanto experiência-piloto
gerou um potencial criador e pleno de iniciativas em seus educandos. Estes,
como sujeitos ativos de suas histórias, desejam e solicitam a continuidade
dessa experiência que revela uma forte tendência de se consolidar
como uma iniciativa que extrapola o nível da extensão e
tende a caracterizar-se cada vez mais como uma fórmula nova e original
de fomentar a educação.
Foram rápidas as suas conseqüências. As reflexões
e os constantes debates da equipe pioneira concluiu que se faz necessária
a utilização de novas e potentes ferramentas que garantam
a continuidade da experiência. Tais reflexões continuam perseguindo
a originalidade: pensa-se num modelo educativo que seja condizente com
a realidade de seus potenciais educandos. Neste sentido, nenhum dos modelos
vigentes parece responder a esta realidade específica. E, assim,
criar a partir de uma experiência bem sucedida parece ser a saída.
A educação à distância surge como um potencial
extremamente profícuo às novas realizações
que se pretende obter com este projeto. Ela oferece aos nossos objetivos
atuais a possibilidade de multiplicação da experiência
pioneira, bem como uma maior autonomia por parte dos monitores locais
na realização de seus trabalhos.
Perseguindo os princípios já delineados pelo Projeto Unicampo,
as experiências multiplicadoras poderão se efetivar de maneira
singular em cada cidade ou região na qual o Projeto se instale.
Esta parece ser uma oportunidade ímpar de fazer eclodir, em diversos
lugares e em momentos sincrônicos, a Universidade Camponesa...
Bibliografia
ABRAMOVAY, Ricardo. Paradigmas do capitalismo agrário em questão.
São Paulo, Hucitec; Rio da Janeiro, ANPOCS, Campinas, Editora da
UNICAMP, 1992.
AGÊNCIA BRASIL. Primeira TV Digital do Brasil vai promover inclusão
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