Educação à distância mediada por tecnologias de informação/comunicação: uma proposta para a pesquisa em ambientes virtuais

 

Gerson Pastre de Oliveira

FE/USP – gepasoli@usp.br

 

Resumo: O presente artigo expõe, após breve análise das diferentes opiniões sobre o processo de ensino-aprendizagem mediado por tecnologias de informação/comunicação, uma proposição de abordagens como a observacional participativa/interpretativa e a etnográfica para a análise dos diversos aspectos presentes nos ambientes virtuais nos quais se dão cursos à distância, com a finalidade de suscitar questionamentos e outras colaborações para a investigação científica desses ambientes, através de um afastamento crítico e reflexivo das soluções mágicas e inevitáveis.

Palavras-chave: Ambientes virtuais, ensino à distância, tecnologias de informação e comunicação, etnografia, pesquisa educacional, observação participante.

 

1.      Introdução

 

Ambientes virtuais consolidados a partir de experiências de aprendizagem levadas a efeito nas modalidades semipresencial e à distância possuem, em aspecto amplo, uma dinâmica peculiar. A criação e a manutenção de semelhantes empreendimentos escora-se fundamentalmente nesta dinâmica e em suas particularidades, dentre as quais diversos fatores surgem ora como determinantes, ora como condicionantes, e, em outras vezes ainda, reunindo ambos os aspectos. Espaço e tempo compõem esse quadro, ao qual somam-se outros elementos, eles mesmos subjazendo tal composição: a natureza múltipla, não-linear, e hipertextual do conhecimento, o qual, para Morin (1999, p.236), “procura pôr ordem e unidade num universo de fenômenos que se apresentam com encadeamentos, multiplicidades, singularidades, incertezas, desordem"; a heterogeneidade das coletividades aprendentes, marcando sérias limitações à escola massificadora e à visão homogeneizada do ‘pacote educativo’, cujos critérios passam ao largo da história e das trajetórias diversas dos indivíduos; a autonomia dos participantes conectados, como resultado de um processo necessariamente contínuo de aquisição, ampliação e re-configuração de saberes e competências; o desenvolvimento de fluência nos processos e instrumentos tecnológicos e de comunicação que mediam as relações de ensino-aprendizagem nesses ambientes; entre outros.

 

2.      A Escola e os ambientes virtuais

 

Os espaços tradicionais – aqueles que não promovem extensões para além de suas fronteiras – trazem limitações atávicas, que vão desde a restrição da interação informacional, promovida por programas e currículos, até a fixação de épocas, prazos, idades e pré-requisitos  -  físicos, mentais e de conhecimento (Kenski, 2002; Ramal, 2000). Sobre este aspecto, Kenski lembra que

em todos os níveis formais de escolaridade são costumeiras as divisões do ensino nestes três tempos [ouvir e ler – pensar, discutir – fazer]. Há um momento para ensinar (professor falar e o aluno ouvir), um outro de aprender (memorizar, refletir ou discutir, se posicionar) e um outro ainda de fazer (muitas vezes confundido pela “escola” com expor ou simular a atividade, em exercícios, prova ou teste), ou seja, utilizar o aprendido no tempo real da necessidade (Kenski, 2002, p.257)

O uso das tecnologias de informação e o caráter interacional da associação entre inteligências com suporte provido por redes de comunicação (a Internet, em especial) – constituindo uma inteligência coletiva, segundo Lévy (1999), ou inteligências conectadas, segundo Kerckhove (1999; 1995) – permitem deslocar as condições de utilização do tempo, originalmente aprisionado na estrutura tradicional, para uma modalidade eminentemente ajustada aos interesses, demandas e possibilidades individuais; ao mesmo tempo, “as possibilidades dos ambientes digitais garantem a construção de novos espaços e tempos de interação com a informação/conhecimento e de comunicação social” (Kenski, 2002, p.257). Segundo Ramal (2000),

O acesso às informações dentro, e principalmente, fora da escola, torna ingênua a tentativa de estabelecer planejamentos rígidos e esquemas antecipados de aprendizagem. Todas as trajetórias são individuais e a educação precisa ser personalizada.

Conforme já mencionei em outro texto (Oliveira, 2002a), parece evidente que os saberes e competências que os estudantes têm a possibilidade de adquirir multiplicam-se e ganham formas diversas. Semelhante processo, no caso de cursos semipresenciais e à distância mediados por tecnologias de informação e comunicação, desvela uma realidade hipertextual e, conseqüentemente, não-linear, que permite/promove transição e movimento, através da qual é possível criar e seguir através de verdadeiras “extensões eletrônicas”, as quais, por sua vez, geram a possibilidade de “tocar” um ponto qualquer sobre o qual se pesquisa, por exemplo, e ter um efeito demonstrável sobre ele (Kerckhove, 1995).

Ao conectar-se, o aprendiz tem diante de si não somente o ambiente provido com estratégias diversas pelos gestores do curso: hyperlinks podem conduzi-lo às mais diversas fontes – as quais, evidentemente, merecem a mais criteriosa análise.  Para o estudante, evidencia-se a possibilidade de inserção em um verdadeiro “universo oceânico de informações”, que tem lugar e é suportado por uma imensa infraestrutura de comunicação digital, prodigalizada pela “interconexão mundial de computadores”, construindo interações neste universo – o ciberespaço (Lévy, 1999, p.17). Entretanto, esta é uma visão que, no mínimo, sugere – senão exige – alterações, re-configurações e reconstruções das práticas de ensino, de modo a mudar, também, em alguma medida, o papel do estudante e do professor neste contexto. Ainda com referência ao texto anterior mencionado

Dentro e fora da sala de aula – que não precisa ser exorcizada, mas expandida e atualizada – o estudante deve atuar diretamente sobre a formação de seus saberes e competências, os quais permanecem em constante e dinâmica renovação. Para isso, deve ter acesso e precisa ser incentivado à apropriação da tecnologia disponível, sem que, com isso, o professor perca de vista sua estratégia didático-pedagógica. O professor, como elemento essencial que é, aprendendo a lidar com o instrumental tecnológico a serviço da educação, tende a renovar sua prática e adequá-la às re-configurações urgentes que se fazem necessárias na escola (Oliveira, 2002a).

Esta visão admite que está em curso um processo de “transição entre a educação e uma formação estritamente institucionalizada (a escola, a universidade) e uma situação de intercâmbio generalizado dos saberes, de instrução da sociedade por si mesma, de reconhecimento autogerido, móvel e contextual das competências” (Lévy, 1997).

 

3.      Professores e alunos – e seus papéis

Ao interesse individual, entretanto, agrega-se, preferencialmente – e em especial nas comunidades virtuais de aprendizagem – uma estratégia pedagógica através da qual objetivos comuns são perseguidos em regime de colaboração, permitindo que os estudantes interajam, simultaneamente, com o conhecimento, com o ambiente no qual se dão as interações e com os outros participantes, em um contexto no qual o professor assume o papel de “facilitador do processo de aprendizagem” (Pallof e Pratt, 2002, p.38), de “(...) animador da inteligência coletiva de seus grupos de alunos (...)” (Lévy, 1999, p.158), ou, ainda, sob o enfoque colaborativo, com a tarefa principal “centrada no acompanhamento e na gestão das aprendizagens”, o que envolve “o incitamento à troca dos saberes, a mediação relacional e simbólica, a pilotagem personalizada dos percursos de aprendizagem” (Lévy, 1999, p.171). A dependência do professor, assim, surge diluída em um ambiente potencialmente democrático (Oliveira, 2002a), o que não chega a promover qualquer desvalorização da atuação docente, nem, tampouco, qualquer diminuição de sua relevância enquanto participante do processo de ensino-aprendizagem.

O foco é deslocado, sem dúvida, para o estudante; entretanto, como incentivador, crítico e mediador, de certa forma, das interações, o professor pode aliar os diversos suportes pedagógicos on line, os quais deve dominar, às colaborações providas pelos estudantes. Essa é uma forma, também, de dividir as responsabilidades do processo com as demais figuras docentes do ambiente virtual (monitores, tutores, entre outros) e com os próprios estudantes (Gabelnick et al, 1990, p.58). A idéia é superar a figura do professor-controlador – de resto, nada meritória – pela proposição do professor-agente, facilitador, orientador e colaborador da aprendizagem. Cardoso (1998) tece comentários  sobre a veloz modificação daquilo que chamou de “visão clássica de ensino”, através da qual, na visão da autora, caberia ao professor um papel ativo de provedor do conhecimento, restando ao aluno tão-somente o papel passivo de receptor deste mesmo conhecimento. Para a autora, o foco do novo modelo é o aluno, o que lhe confere um papel ativo e autônomo no processo de aprendizagem pelo qual passa. Citando Jonassen e colaboradores (1995), Pallof e Pratt argumentam

(...) a facilitação proporcionada pelos ambientes de aprendizagem que estimulam a construção de sentido pessoal, bem como a construção social do conhecimento e do significado por meio de interações com outras comunidades de alunos, é preferível às intervenções do professor, que controlam a seqüência e o conteúdo da instrução; (...) o processo educacional está centrado no aluno, com os aprendizes tomando a frente e determinando o ritmo e a direção do processo (Pallof e Pratt, 2001, p. 39)

4.      Debates, posicionamentos e investigação

 

Ao comentar sobre a inserção revolucionária do texto eletrônico na leitura, considerando as intervenções – limitadas sob o códex – que o leitor pode fazer naquilo que está escrito – e mencionando os riscos de semelhantes interferências – Roger Chartier emite, segundo creio, uma opinião emblemática sobre “a mutação considerável que está transformando os meios de comunicação e de recepção da escrita”, que penso poder estender um tanto mais amplamente: “Não se decreta uma revolução técnica. Ela não é tampouco suprimida” (1994, p.106).

  Mas há opiniões imensamente diversas e/ou conflitantes, sem dúvida. A crítica de Paul Virilio sobre questões relacionadas à tecnologia, por exemplo, menciona a desqualificação do mundo real pelo virtual (Virilio,1993), a perturbação ininterrupta das estruturas sociais, a conversão do homem-nômade no homem-sedentário, sentado diante da tela do computador, a subversão do espaço-tempo real em favor de um simulacro virtual (op.cit.), entre outras. Baudrillard vê na expansão da comunicação virtual um fator de destruição do social, de “desertificação sem precedentes do espaço real” (1997, p.24); enxerga aspectos extremamente negativos relacionados com a informação, a qual, para ele, “dissolve o sentido e dissolve o social numa espécie de nebulosa votada (...) à entropia total” (1991, p.106); vê nos media “produtores não da socialização, mas do seu contrário, da implosão social nas massas” (op.cit.). Pierre Lévy, de maneira diametralmente contrária, considera que não existe oposição entre o real e o virtual – “(...) ainda que não possamos fixá-lo em nenhuma coordenada espaço-temporal, o virtual é real. (...) O virtual existe sem estar presente.” (Lévy, 1999, p.48) – apenas entre o virtual e o atual, “dois modos diferentes de realidade” (op.cit.). No âmbito da cibercultura surgem laços sociais desembaraçados de ligações de ordem territorial e/ou institucional, não fundamentados sobre as relações de poder. A fundamentação de tais laços, no contexto da virtualidade, estaria “sobre a reunião em torno de centros de interesses comuns, sobre o jogo, sobre o compartilhamento do saber, sobre a aprendizagem cooperativa, sobre processos abertos de colaboração” (Lévy, 1999, p.130).

Na educação, esta diversidade de opiniões também se manifesta, proporcionando uma amplitude que vai desde a idéia de que a sala de aula tradicional está condenada ao desaparecimento até sua radicalmente oposta – a de que a mediação pela tecnologia é inadequada para a formação de ambientes de aprendizagem. Seja como for, permanece o movimento, intenso, ininterrupto, através do qual cursos semipresenciais e à distância vão sendo oferecidos por diversas instituições (o que não quer dizer que todos tenham qualidade adequada). Surgem os ‘entusiastas incondicionais’ e os ‘radicalmente avessos’ – posturas simplistas e recorrentes e, até certo ponto, comuns na análise histórica da cultura escolar entre aqueles que, de um lado, postulam a inexistência de inovações pedagógicas ao longo do tempo e, aqueles que, de outro, pretendem superestimar a originalidade de determinadas idéias (Julia, 2001, p.9-43, passim). Nem decretada, nem suprimida, portanto, a revolução prossegue.

Por serem as tecnologias mencionadas relativamente novas, sempre existe o risco de supervalorização dos conceitos, métodos, teorias e técnicas ligadas ao seu uso na educação. Para Geertz (1989), o surgimento de novas idéias no cenário científico causa considerável impacto inicial, devidamente atenuado em tempo justo pelo amadurecimento de conceitos e extensões relacionados a elas, que passam a compor no número de conceitos teóricos utilizados pelos pesquisadores, sem destaque excessivo. A visão acrítica do uso da tecnologia como suporte/ambiente na educação, que lhe dá ares de panacéia maravilhosa e indiscutível – a idéia que representa a “chave para o universo” (Geertz, 1989, p.3) –  é tão prejudicial quanto à imobilidade paradigmática, que não encontra lugar para reflexões e mudanças diante da natureza ampla e móvel do conhecimento e suas formas de apropriação, da complexidade – e da desordem – do saber, que, de acordo com Lévy (1996;1999), flutua, destotalizado, em fluxo.

Assim, variadas questões impõem-se, envolvendo diversos aspectos relacionados ao próprio processo de ensino-aprendizagem mediado por tecnologias de informação e comunicação, às interações de sentido múltiplo entre os sujeitos, uns com os outros, e entre os sujeitos e o ambiente virtual, e às intervenções dos participantes do processo em relação aos objetos de estudo, focalizando elementos centrais dos discursos até agora empregados. Estas tecnologias vão sendo inseridas no cotidiano de alunos e professores, grande parte das vezes sem qualquer ação mediadora, preparatória ou reflexiva. Surgem posicionamentos contra e a favor – mas com que solidez teórica? Participantes do processo, aqui e ali, revelam-se indiferentes ou desinteressados – mas nem por isso neutros. Neste sentido é que a investigação científica pode promover o posicionamento crítico, descolado dos discursos prontos. Vejo esta intenção na argumentação de Kenski ao clamar por

uma educação crítica sobre os media, retirando-lhes a aura de “caixas-pretas”, objetos mágicos poderosos e temidos, colocando-os em seus devidos lugares, como equipamentos, ferramentas e espaços – neste caso, educacionais – que podem revolucionar o ensino e auxiliar professores e alunos a ensinar e aprender (Kenski, 2001, p.76)

5.      Opções – e métodos – de pesquisa

 

            Retomo a questão da aprendizagem em ambientes virtuais para indicar que a mesma deve ser objeto de investigações que se comprometam com a profundidade, com a imersão nas comunidades formadas pelo interesse ou pela necessidade de aprender – ainda que outras modalidades investigativas tenham lugar na compreensão de fenômenos desse tipo.  É fundamental, nestes contextos, compreender o papel das interações na formação e consolidação dos significados – e não apenas das expressões (Vygotsky, 1987) – bem como a intervenção subjacente da comunidade na aprendizagem individual. 

Para Lave e Wenger (1991), são componentes essenciais e indissociáveis da aprendizagem o fazer (atividade), a situação (contexto) e a própria cultura dos indivíduos em interação. Através das interações sociais, os participantes constituem comunidades de prática, elas mesmas definidoras de crenças e comportamentos. Neste quadro, não se concebe o processo de aprendizagem apartado da prática e das interações promovidas pelo ambiente. A participação mais ativa e a contribuição para a consolidação da cultura comunitária ocorrem tanto mais quanto o indivíduo movimenta-se da periferia para o centro da comunidade (participação periférica legítima). A atividade contextualizada representa o sentido entre o aprendiz e a comunidade, bem como o mecanismo através do qual a comunidade legitima a intervenção individual. Em Wenger (1998):

Uma comunidade de prática define a si mesma ao longo de três dimensões: (...) seu empreendimento conjunto é entendido e continuamente renegociado por seus membros; (...) o engajamento mútuo que liga seus membros em uma entidade social; (...) [e] o repertório compartilhado de recursos comunais (rotinas, sensibilidades, artefatos, vocabulários, estilos, etc.) que os membros tenham desenvolvido no decorrer do tempo

A percepção e a descoberta dos fenômenos de aprendizagem em ambientes virtuais devem levar em consideração essa multiplicidade, constituinte de uma cultura própria. A amplitude dos meios e a complexidade informacional/comunicacional envolvidas indicam que não há espaço para descrições superficiais, análises descomprometidas de maior profundidade ou a assunção de rótulos fáceis, contendo fórmulas definitivas. Justifica-se, segundo creio, em cada ambiente que alguém se proponha estudar – e, especificamente, até, para cada elemento envolvido na aprendizagem neste ambiente – a elaboração de uma descrição densa (Geertz, 1989), por si mesma factível mediante a imersão de caráter participativo e de longo prazo na comunidade instituída no ambiente virtual que esteja sob investigação. Neste aspecto é que proponho uma abordagem de caráter etnográfico, assim entendida, neste contexto de análise, como a imersão no cotidiano dos indivíduos que aprendem comunitariamente em determinado ambiente virtual, ou, ainda, como um método, qualitativo por excelência, baseado nas interações pesquisador-objeto de estudo, enfatizando o cotidiano e o subjetivo (Fonseca, 1999). Ou, de outro modo, uma abordagem observacional participativa interpretativa, da expressão usada por Erickson (1989, p.196), que prefere assim referir-se ao método por ser o termo ‘interpretativo’ mais inclusivo que ‘etnográfico’ ou ‘estudo de casos’ – e por não excluir completamente a idéia de quantificação no estudo.

 Sobre a inserção da etnografia como método de pesquisa na educação, comenta Rockwell:

Na década de 70, desenvolveu-se, especialmente nos países anglo-saxões, um modo diferente de pesquisar no campo educacional: a etnografia. Ligada à antropologia e à sociologia qualitativa, logo constituiu uma opção radicalmente diversa dos paradigmas dominantes na pesquisa educacional, provenientes da psicologia experimental e da sociologia quantitativa (Rockwell, 1989, p.31)

A partir de um exemplo extraído dos escritos de Ryle sobre os diferentes significados do ato de piscar, Geertz (1989, passim) situa o objeto da etnografia: entre a “descrição superficial”, meramente fenomenalista (aquela que vê em qualquer piscar um simples contrair de pálpebras) e a “descrição densa” (capaz de extrair o significado de cada diferente piscar), evidenciando assim uma hierarquia estratificada de estruturas significantes no âmbito das quais os fenômenos ocorrem, são apreendidos e, finalmente, interpretados. Corroborando sua afirmação de que a etnografia busca uma descrição densa, Geertz conclui que o trabalho do etnógrafo se dá em meio a diversidades conceituais de caráter complexo, muitas das quais surgem ora como substrato de outras, ora interligadas, sem por isso deixarem de ser “estranhas, irregulares e inexplícitas” (p.7). Cabe ao etnógrafo, então, apreender inicialmente, para apresentar posteriormente, em um processo mediado pela análise, o qual, por sua vez, compreende a escolha entre as estruturas de significação e a determinação da base social e importância das mesmas.

Ao argumentar em favor de uma pesquisa de campo observacional participativa e interpretativa na educação, Erickson (1989, passim) indica que semelhante modalidade tem como fundamental a noção do social, à medida que se ocupa da relação entre as perspectivas de significado dos atores e as circunstâncias ecológicas de ação. Outra suposição básica levada em conta pela teoria interpretativa da organização social é a simultaneidade de operação dos sistemas formal e informal, o que implica uma atuação conjunta das definições oficial e extra-oficial do status e dos papéis desempenhados pelas pessoas. Tal suposição não é levada em conta no enfoque chamado pelo autor de “padrão” para a investigação do ensino. Por outro lado, ainda segundo Erickson, na investigação social interpretativa sobre o ensino é essencial atentar para o processo e a estrutura da ecologia social, de modo a compreender as maneiras pelas quais professores e alunos, em suas ações conjuntas, constituem ambientes uns para os outros. O investigador, então, considera tais aspectos na observação, registrando a organização social e cultural dos acontecimentos observados, na suposição de que a organização do “significado na ação”  é, ao mesmo tempo, o ambiente de aprendizagem e o conteúdo a aprender.

Erickson (op.cit.) comenta que os significados na ação compartilhados pelos membros de um meio social qualquer, cujos indivíduos interagem de maneira intermitente através do tempo, são locais, pelo menos nos sentidos. Tais indivíduos constituem o que o autor chama de “microcultura distintiva”. Um motivo alegado para a consideração local dos significados na ação por parte dos investigadores interpretativos é o caráter local da execução momento a momento da ação social em tempo real. Ao contrário da pesquisa positivista, a pesquisa interpretativa é bastante cautelosa quanto à generalização das ações, considerando a relevância do momento presente no convívio entre as pessoas de um grupo, os quais mantêm delicado equilíbrio interacional. Entretanto, de outro modo, os significados são também de origem extra-local, pelo fato de as relações presenciais serem constituídas também de materiais criados em momentos diversos. Exemplos desse tipo de influência podem ser a cultura, enquanto uma série de regras aprendidas e compartilhadas para perceber, criar, atuar e avaliar as ações alheias, e a percepção dos indivíduos de um grupo dos interesses ou das restrições que prevalecem em um mundo além do horizonte de suas relações ambientais. Para a pesquisa interpretativa, entretanto, a sociedade e a cultura existem, mas não em um estado reificado, o que equivale dizer que não se consideram vínculos causais entre as influências extra-locais e certas ocorrências específicas. Pretende-se, portanto, determinar os modos específicos pelos quais as formas locais e extra-locais de organização social e de cultura se relacionam com as atividades das pessoas específicas quando efetuam opções e realizam juntas uma ação social. Apesar das especificidades de um estudo determinado, isso não significa, na visão do autor, que a perspectiva interpretativa esteja desinteressada do descobrimento de fatores universais, mas toma caminhos diversos para determiná-los, na busca de fatores universais concretos, aos quais se chega estudando um caso específico em detalhes e comparando o mesmo, em seguida, com outros casos estudados igualmente.

Os ambientes virtuais trazem, nas interações que promovem, um caráter de presença, como advogam Lévy (1999) e Pallof e Pratt (2002). Ao investigar, atualmente, características formativas de avaliação em agrupamentos constituídos em cursos à distância (Oliveira, 2002b), nos quais essa presença é claramente identificável, localizo algumas indicações de que o uso de um dos métodos supramencionados é adequado:

·        a avaliação formativa é contextual, inserida no processo, não ocorrendo em momentos definidos, isolados e desconectados do processo como um todo (Luckesi, 2001; Perrenoud, 1999). Em ambientes virtuais, sua inserção é observável em espaços que permitem a intervenção do pesquisador e sua permanência em campo por um prazo relativamente longo;

·        análise, interpretação e re-interpretação dos produtos observacionais têm lugar naturalmente em atividades de caráter assíncrono (e mesmo em algumas de caráter síncrono), bem como a reformulação ou o reajustamento das questões inicialmente postas à superfície, característica marcante da abordagem etnográfica, por exemplo;

·        comunidades como as constituídas em virtude dos cursos à distância que utilizam estratégias colaborativas podem apresentar fenômenos à análise os quais, quando confrontados com outros estudos e devidamente contextualizados, podem servir de base a generalizações que, por sua vez, podem assumir o caráter de importante contribuição teórica;

·        uma vez situado no âmbito da cultura que pretendo pesquisar, a própria dinâmica das interações determina a representatividade dos sujeitos e, por conseqüência, a escolha dos informantes, sem a necessidade de critérios estatísticos.

 Semelhante proposição tem por finalidade a de encontrar o mais pertinente método para o estudo de ambientes de aprendizagem mediados por tecnologias de informação e comunicação, assumindo que nem tudo está dito e que a própria tecnologia, por si só, não é capaz de responder a nada. A intenção desse artigo, portanto, foi a de despertar questionamentos e suscitar outras colaborações, entendendo, como estou, que há um campo aberto à constituição da solidez teórica que faculte aos envolvidos com a educação, em aspecto amplo,   um afastamento crítico e reflexivo das soluções prontas, mágicas e inevitáveis, de modo a permitir que, dos estudos de contextos particulares, em diversos locais e em diferentes condições, novas luzes sejam lançadas sobre um continente cognitivo ainda notoriamente sombrio.

 

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