A linguagem nos cursos a distância
Interagindo com o aluno virtual

ABRIL/2004

 

Elisabeth Silveira
beths@fgv.br

Mary Murashima
maryk@fgv.br

 

Planejamento, Elaboração e Avaliação de Materiais Didáticos para Educação a Distância
Educação Corporativa

As últimas décadas têm sido marcadas por profundas transforma-ções, tanto em nível nacional como internacional. Forças de natureza po-lítica, econômica, tecnológica e social imprimem um novo ritmo e novos padrões ao mundo. No âmbito da educação – a rápida evolução das tec-nologias da informação e da comunicação gerou vários produtos que maximizaram a produtividade dos programas de formação a distância, principalmente aqueles assistidos por computador. A interatividade – vis-ta, até então, como fator negativo desses programas – foi otimizada com a utilização dessas novas tecnologias. Alteram-se, assim, os paradigmas dos programas de ensino a distância, evoluindo-se para modelos mais abertos, flexíveis e ricos na utilização de recursos tecnológicos. Conside-rando essas constatações, neste trabalho pretendemos discutir até que ponto essa interação tem de fato se instaurado nos cursos a distância.

 


As últimas décadas têm sido marcadas por profundas transforma-ções, tanto em nível nacional como internacional. Forças de natureza po-lítica, econômica, tecnológica e social imprimem um novo ritmo e novos padrões ao mundo.

No campo social – mas precisamente no âmbito da educação – a rápida evolução das tecnologias da informação e da comunicação gerou vários produtos que maximizaram a produtividade dos programas de formação a distância, principalmente aqueles assistidos por computador. A interatividade – vista, até então, como fator negativo desses programas – foi otimizada com a utilização dessas novas tecnologias. Alteram-se, assim, os paradigmas dos programas de ensino a distância, evoluindo-se para modelos mais abertos, flexíveis e ricos na utilização de recursos tecnológicos. Ambientes multimídia interativos incrementam a difusão de vários tipos de informações suscetíveis de serem digitalizadas, oportuni-zando ao próprio aluno o controle de suas estratégias de estudo.

Inserido nesse contexto, a cada dia, o setor empresarial se defron-ta com novos desafios. O paradigma gerencial contemporâneo exige for-mas flexíveis de gestão, descentralização de funções, redesenho de es-truturas e criatividade dos recursos humanos. Conseqüentemente, exige das instituições um esforço contínuo no sentido de antever futuras ten-dências, preparar-se e equipar-se para aceitar e compreender as trans-formações que desafiam o cotidiano empresarial.

Cientes de que as mudanças são inevitáveis e de que as organiza-ções inovadoras devem ser desenhadas como sistemas humanos de con-tínua aprendizagem e de acumulação gradativa de experiência, as empre-sas esforçam-se para preparar seu corpo funcional, com vistas à maior qualidade e produtividade de suas ações, mediante a adoção de modelos capazes de gerar resultados num mercado altamente competitivo.

Mais do que nunca, as empresas passam a demandar programas de treinamento que desenvolvam o potencial humano nelas existentes, de modo a ajustar o perfil de seus funcionários às exigências hoje a elas re-queridas. Nesse contexto, certamente, o conhecimento e a informação definem-se como fatores-chave de sucesso. Buscando tanto otimizar a relação custo-benefício quanto atender as necessidades crescentes e contínuas de requalificação profissional, as empresas acabam por conso-lidar os programas de ensino a distância, marca do novo paradigma edu-cacional.

Avulta-se o mercado de instituições que ofertam ensino a dis-tância. De posse de algumas ferramentas, todas se acham aptas a transformar cursos presenciais em cursos a distância. Ignoram, porém, que essa transformação não é suficiente para assegurar a qualidade da produção de materiais adequados aos meios de comunicação e infor-mação.

Programas, cursos, conteúdos oferecidos a distância exigem, en-tre outras coisas, lógica, desenho e linguagem que não são mera transposição do presencial. Ou seja, o ensino a distância tem i-dentidade própria.

Visando definir com mais precisão o papel da linguagem na construção do material didático adequado ao ensino a distância, focali-zaremos, aqui, alguns conceitos lingüísticos.

Cada vez mais fica evidente que o desenvolvimento das habilida-des lingüísticas e de algumas capacidades cognitivas é favorecido pelo letramento, por meio da observação e da manipulação de objetos, pro-cessos e eventos, e de textos verbais e não-verbais diversos, endereça-dos a / e por diferentes interlocutores. Em todas estas situações, a lin-guagem desempenha papel essencial, já que possibilita ao falante consti-tuir-se como sujeito diante do outro, expressando suas opiniões, toman-do consciência de si mesmo e do real.

Nos cursos a distância, a veiculação do conhecimento se dá, na maioria das vezes, por meio de materiais didáticos – telas da web, livros textos, apostilas, manuais... – elaborados primordialmente na modalidade escrita da língua. Porém, a linguagem desse material difere da de seus usuários. Como tal falta de sintonia pode repercutir diretamente no de-sempenho dos alunos dos cursos a distância – tentaremos, aqui, anali-sar o tipo de linguagem – enquanto mediadora da interação conhecimen-to / aluno – utilizada no material didático dos cursos a distância, veicu-lados no computador. A compreensão deste discurso poderá tornar me-nos opacos os processos através dos quais muitos desses cursos não atendem os objetivos que motivaram sua criação.

Inicialmente, convém lembrar que o caráter dialógico da lingua-gem – a interação – é um fator determinante da construção do conheci-mento. Porém, essa interação nem sempre assim se realiza: é o material didático utilizado nos cursos a distância que, a partir de objetivos previ-amente definidos, demarca o espaço discursivo dentro do qual os seus usuários devem atuar. Conseqüentemente, isto acaba por determinar, muitas vezes, a minimização do ponto-de-vista do aluno, salientando o espaço de poder legitimado ao material didático. Neutraliza-se, assim, a dimensão dialógica da linguagem: ao diminuir a voz do usuário, sobres-sai a postura monológica do material didático, o que ignora a condição primária de falante desses alunos. Esse gap se amplia, quando se exige que esses alunos dominem a variedade padrão / culta da língua, já que nela é codificado o conhecimento veiculado dos materiais didáticos dos cursos a distância.

Quando se reduzem as diferentes possibilidades de usos da lín-gua à variedade socialmente legitimada, desconsidera-se que esta é re-sultante, em sociedades urbanas e industriais, como a nossa, do capita-lismo que estrutura socioeconomicamente uma comunidade em classes distintas. Esta influência faz com que uma variedade da língua assuma determinado valor social, reflexo dos falantes que a utilizam, permitindo, neste caso, que o uso culto passe a ser considerado o padrão lingüístico de uma comunidade.

A partir do estabelecimento arbitrário do padrão lingüístico, de-terminam-se os conceitos de certo / errado. Assim, a variedade, cujas re-gras gramaticais se desviem das que marcam a variedade culta, é estig-matizada socialmente como um uso errado da língua. Segundo CAGLIARI , a sociedade se apega a desvios lingüísticos, que, por si só, são neutros – já que não são erros, mas manifestações de variáveis lingüísticas dis-tintas – a fim de usá-los como argumentos para seus preconceitos. Logo, o material didático dos cursos a distância reforça a imposição de uma determinada variedade lingüística – aquela considerada a padrão -- in-corporando e ratificando os preconceitos sociais decorrentes da não a-ceitação das demais. Conseqüentemente, esse mesmo material acaba por ignorar a linguagem de seus usuários, impondo-lhes seu discurso.

A distância entre o discurso do material didático dos cursos a dis-tância e o discurso de seus usuários se alarga quando constatamos que os padrões lingüísticos postulados para a variedade culta são determi-nados pela gramática normativa, que prescreve as regras do bom uso da língua, a partir de sua modalidade escrita, literária e não contemporânea. Os problemas que daí advêm são significativos, pois a modalidade lin-güística escrita é muito menos usada que a falada, em qualquer momento histórico-cultural; a manifestação literária da língua é produzida apenas por um grupo limitado de falantes, geralmente letrados; e sua não con-temporaneidade ignora o caráter dinâmico da língua, representando-a por algo que ela já não é. A compreensão deste distanciamento é aprofunda-da quando verificamos que a literatura, como as artes em geral, caracte-riza-se como espaço para subversão à norma estabelecida. E assim a gramática normativa se vê obrigada a formular listagens de exceções, colocadas lado a lado com regras gerais, de modo a dar conta dos usos idiossincráticos da variedade lingüística que elegeu como padrão: escri-ta, literária e não-contemporânea.

TANNEN chama, ainda, atenção para o fato de que a função refe-rencial da linguagem tem nas situações de transmissão de conhecimen-tos espaço privilegiado e que tal função se manifesta, prioritariamente, nos materiais didáticos. Pelo fato de estar centrado na informação e na exposição teórica, a linguagem desse material se constrói à margem das relações interpessoais específicas da interlocução. A referencilalidade e a impessoalidade marcam prototipicamente o seu discurso. Além disto, o fato de o material didático manter um tópico temático, por um extenso período de tempo, faz com que seu discurso se assemelhe mais ao dis-curso acadêmico do que ao discurso característico das interações inter-pessoais. Novamente, o espaço da interlocução, o espaço da fala do u-suário, limita-se, diante da monopolização do discurso do material didá-tico.

Para GRICE a implementação de situações interativas depende da disposição de os participantes negociarem cooperativamente o sentido, evitando mal-entendidos e reparando-os quando estes ocorrerem. No ma-terial didático dos cursos a distância, reduz-se este processo a uma pseudo-interação, pois seu discurso caracteriza-se não só por uma estru-tura acadêmica marcada pela informação e pela exposição teórica, mas também por uma estrutura social, reflexo dos aspectos sociopolíticos inerentes ao papel de seus usuários. Assim, o discurso do material didá-tico dos cursos a distância é marcado pela circularidade pedagógica: a descontextualização da linguagem e o alto grau de informatividade pre-tendem levar o aluno a comprovar a obtenção de um determinado objeti-vo de ensino.

Como o discurso do material didático dos cursos a distância se constrói a partir de objetivos programáticos, transforma-se num discurso altamente planejado, onde o que se busca é um sentido que o curso prio-riza, transmite e deseja que seus usuários apreendam. Este sentido, se-lecionado antes da produção do material didático, não admite questio-namentos, e raramente comporta adesão de novos sentidos, principal-mente se oriundos dos alunos.

Definido desta forma, o discurso do material didático dos cursos a distância se constitui como uma prática de linguagem diferenciada, fru-to do contexto institucional em que é produzido. Nele, o usuário pouco contribui para a construção do sentido, por meio de um processo com-plexo que combina o conhecimento da instituição, o enquadramento no curso e a leitura das pistas contextualizadoras da pseudo-interação or-questrada pelo material didático. Logo, o aluno acaba por aprender a produzir os sentidos que o material didático deseja.

Pelo que até agora se pôde ver, a linguagem utilizada nos materi-ais didáticos dos cursos a distância assume um caráter condicionante, capaz de estabelecer sentidos pragmáticos apenas dentro do ambiente do curso. Quando se considera que um curso a distância se propõe a in-vestir no afetamento daqueles a quem se dirige -- afetamento, aqui equi-valendo à aprendizagem, à mudança de comportamento – tal discurso só pode ser avaliado de acordo com sua eficiência, ou seja, pelo grau de mudança – aprendizagem – que proporciona; e, se não afeta o interlocu-tor, não produz mudanças, sendo, portanto, ineficiente.

 


Bibliografia

CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e Lingüística. 4.ed. São Paulo, Sci-pione,1992.

GRICE, H.P. Logic and conversation. In: M. COLE & J.P. MORGAN. Syntax and semantics 3. New York: Academic Press, 1993.

TANNEN, D. Implications of the oral-literate continuum for cross-cultural communications. In: ALATIS, J.E. Georgetown University Round Table on Language and Linguistics 1980, Current issues in billingualism. Whasing-ton D.C.: Georgetown University Press.