EAD E A CIRCULARIDADE PERCEPÇÃO-AÇÃO
COM O  CORPO TECNOLOGIZADO


Vicente Eudes Veras da Silva
UNESA - Universidade Estácio de Sá/RJ

eudesmat@uol.com.br

(Texto original com imagens: clique aqui)


Neste século XXI, estamos diante de uma revolução nos meios de comunicação sem paralelos desde a invenção da escrita. Com a EaD, o 'mental' e o 'corpóreo' deixam de ser realidades completamente distintas para se tornarem complementos de um mesmo processo, onde envolvem-se as tecnologias interativas, o corpo humano e a sensibilidade.
O conceito de EaD que emerge do diálogo homem-máquina altera a educação devido as imprevisibilidades e indefinições que nascem das interações do corpo com as tecnologias. A troca de saberes entre as pessoas e a máquina passa pelo corpo, onde a pele já não significa uma fronteira. Estamos diante de uma comunicação da educação que nos torna conscientes de nossos próprios corpos.
Palavras-Chave: corpo tecnologizado – EaD – circularidade percepção-ação

Para o discurso científico contemporâneo, o corpo é pensado como matéria indiferente, simples apoio da pessoa, a tal ponto que se torna objeto manipulável, para ser aperfeiçoado, matéria prima em que se dilui a identidade pessoal.

Por outro lado, o surgimento de um ciberespaço acelerou mudanças em todos os estratos sociais, afetando sobremaneira o indivíduo e, principalmente, suas relações com o conhecimento. No momento em que a sala de aula deixou de ser o único lugar de se aprender e que temos a EaD como uma importante ferramenta para a democratização do conhecimento, não podemos desconsiderar o corpo tecnologizado nestas mudanças.

            Afinal, que EAD teremos neste século XXI?

            Para Pierre Levy (2001), “uma criança que aprende reproduz o próprio movimento da espécie, uma espécie que não deixou de aprender no curso de sua pré-história, de sua história e que continuará a aprender após a história, no estranho tempo que começamos a produzir hoje.  Sim, aprendemos muitas coisas desde um milhão de anos atrás e, certamente isso não acabou.  Ao contrário.  Nossa aprendizagem irá agora se acelerar a um ritmo bem mais rápido do que até então”.

            Defendo a idéia de uma EaD com o corpo tecnologizado.

Para Lévy (1998), esse novo contexto atinge não apenas os setores ligados diretamente às formas de comunicação, mas a todos os aspectos do viver humano pois, “os avanços da biologia e da medicina nos incitam a uma reinvenção de nossa relação com o corpo, com a reprodução, com a doença e com a morte. ... seleção artificial do humano transformado em instrumento pela genética. O desenvolvimento de nanotecnologias capazes de produzir materiais inteligentes em massa, simbióticos microscópicos artificiais de nossos corpos ... Os progressos das próteses cognitivas com base digital transformam nossas capacidades intelectuais tão nitidamente quanto o fariam mutações de nosso patrimônio genético. As novas técnicas de comunicação por mundos virtuais põem em novas bases os problemas do laço social. ... a hominização, o processo de surgimento do gênero humano, não terminou, mas acelera-se de maneira brutal”.

Toda essa nova configuração de mundo provoca profundas alterações na EaD, onde o avanço da tecnologia se configura em outros dois vetores: num, registra-se o avanço irreversível da tecnologia, incluindo a tecnologia corporificada, e noutro , esse avanço impõe a reorganização constante e permanente da vida de todos nós em temporalidades cada vez menores. Isto nos remete a considerar viver em uma sociedade que lida com a informação e com a mudança em ritmos e quantidades vertiginosas.

Seguindo este raciocínio, estamos numa sociedade sob o desenvolvimento vertiginoso da ciência e tecnologia embora o excesso de informações produza, muitas vezes,  carência de significados e sentidos.  Nesta perspectiva, cabe a EaD, além de dominar a tecnologia e  dar significado e sentido ao volume de informação, pensar os meios como processos educativos no âmbito de uma pluralidade cultural.

O saber passa então a adquirir um novo status de importância, constituindo um dos principais agenciadores das transformações da vida humana. Esse saber tem como característica principal o fato de ser eminentemente coletivo.  Lévy (1998) diz que inteligência coletiva “é uma inteligência distribuída por toda parte, incessamente valorizada, coordenada em tempo real”.

Dessa forma, os limites que separam mente e corpo tendem a se diluir, impulsionados pela  difusão das tecnologias digitais.

Boa parte dos estudos atuais nos campos das ciências da cognição e da neurobiologia apontam para uma complexa dialética entre o afetivo e o cognitivo. Isso traz profundas implicações para o processo ensino-aprendizagem.  Segundo Damásio (1996), “a idéia de que o organismo inteiro, e não apenas o corpo ou o cérebro, interage com o meio ambiente é menosprezada com freqüência, se é que se pode dizer que chega a ser considerada.  No entanto, quando vemos, ouvimos, tocamos, saboreamos ou cheiramos, o corpo e o cérebro participam na interação com o meio ambiente”.

Maturana e Varela (1995)  que defendem a unidade operacional do ser/fazer humano onde as nossas percepções conscientes, ainda que as diferenciamos entre sensoriais ou espirituais  (dos sentidos, sensações, emoções, pensamentos, imagens, idéias), elas não operam “sobre” o corpo; eles são o corpo, são expressão da dinâmica estrutural do sistema nervoso em seu presente, operando no espaço das descrições reflexivas (dinâmica social da linguagem)”.

            A aprendizagem enquanto um processo consiste na transformação, através da experiência, do comportamento de um organismo de uma maneira que, direta ou indiretamente, está ligada à manutenção da sua circularidade básica. Este é um processo histórico no qual cada modo de comportamento constitui a base sobre a qual um novo comportamento se desenvolve. O organismo assim está num processo de mudanças contínuo que é especificado através de uma seqüência interminável de interações com entidades independentes que as selecionam mas não as especificam.

Na base do  desenvolvimento do ser vivo está a encarnação sensório-motora, o fato de que toda percepção implica uma ação, que toda ação implica uma percepção. Portanto, trata-se de uma circularidade percepção-ação, onde o essencial é que haja uma interação entre o organismo e o meio ambiente.  Para Maturana e Varela (1995;1997a;1997b;1998;1999),  para que o organismo esteja suficientemente encarnado no seu ambiente, para poder arranjar-se nele apesar de não ter nenhuma representação de um mundo prévio, seu mundo deve emergir com suas ações, precisa ser um mundo "enagido". Sendo um sistema neuronal, o cérebro é fundado sobre essa lógica da viabilidade: no seu funcionamento, tudo volta a essa busca de estabilidade sensório-motora. Para alimentar-se, os animais encontraram a solução de comer suas presas. Precisam, portanto, mover-se — e a locomoção é sua lógica constitutiva. E é aí que aparece o sistema neuronal, porque para caçar, mover-se, é necessária uma circularidade percepção-ação.

Acredito que a EaD possa desempenhar esta circularidade percepção-ação a partir do momento que caracterizarmos o mundo somente por suas potencialidades  e não por seus atributos.  Não há adaptação a um mundo exterior, o que existe é uma transformação do mundo através de uma interação entre o organismo e o meio ambiente. 

            Segundo Maturana, o aprendizado não é um processo de acumulação de representações do ambiente, ele é um processo contínuo de transformação do comportamento através de mudanças sucessivas na capacidade do sistema nervoso para sintetizá-lo. A lembrança não depende de uma retenção indefinida de uma invariante estrutural que representa a entidade (uma idéia, uma imagem ou símbolo), mas da habilidade funcional do sistema para criar, quando certas condições recorrentes são dadas, um comportamento que satisfaça a demanda recorrente, o que o observador classificaria como uma reedição de uma anterior.

Em trabalhos que questionam os limites corporais, Stelarc, tem chocado com os seus espectáculos artísticos na fronteira da tecnologia dando imagem, som e cor a um ser humano ‘ampliado’ (FOTO 1) nas suas funções ou literalmente ‘conectado’ ou ‘teleoperado’ à distância por outros. Para ele, o corpo humano é uma estrutura evolutiva, cuja arquitetura pode e deve ser ‘redesenhada’ e em que a tecnologia é um ‘apêndice’. Para Stelarc, o corpo humano pode ser encarado como uma arquitetura evolutiva, “o próprio corpo já não pode mais ser assim denominado, melhor será chamá-lo de “homem-planeta”, aquele que possa existir em condições variáveis de atmosfera, gravitação e campo eletromagnético”,

Entre as suas próteses mais famosas estão um terceiro braço (FOTO 2) e um terceiro ouvido (FOTO 3) e experiências com máquinas andantes comandadas por movimentos de braço.

A idéia é a do corpo humano se transformar numa interface, num  novo ‘media’ necessário à EaD. A Internet deve deixar de ser apenas um veículo de transmissão de informação para se tornar em um meio de ação física efetiva. A Internet é como um sistema nervoso que pode conectar – literalmente falando – corpos e organismos que são nós dessa rede. Stelarc recusa encarar esta “ampliação” como uma perca do emocional humano, pelo contrário, não se destina a perder o comportamento emocional, mas a ‘ter experiências adicionais’.

Trata-se de um novo paradigma de subjetivação e de cognição ainda em gestação (podendo ou não vingar), permitindo que corpos tecnologizados sejam colocados a serviço da EaD.  Nesse sentido, como afirma Pretto (1996), “não basta, portanto, introduzir na escola o vídeo, televisão, computador ou mesmo todos os recursos multimediáticos para se fazer uma nova educação. É necessário repensá-las em outros termos porque é evidente que a educação numa sociedade dos mass media, da comunicação generalizada, não pode prescindir da presença desses novos recursos. Porém, essa presença, por si só, não garante essa nova escola, essa nova educação”.

            Voltando à pergunta inicial, que EaD teremos neste século XXI?

Teremos, porque precisaremos ter, e não, uma questão de opção, um ambiente que acomode simultaneamente todas as modalidades de pensamento, incluindo sensações, interação e o exercício da cognição.  Um ambiente em que o nosso corpo atual, talvez até, atrapalhe e, nesse sentido acredito na visão do corpo como mecanismo a ser aprimorado tecnologicamente.  Como diz David Le Breton, o corpo seria apenas rascunho irrisório a ser retificado pela tecnociência ou mesmo a ser eliminado, como sustenta com convicção parte da cibercultura americana.

 FOTO   1

Para Stelarc, o corpo humano pode ser encarado como uma arquitetura evolutiva

FOTO 2

Stelarc e sue terceiro braço teleoperado à distância.

FOTO   3

STELARC prega que o importante, além da liberdade de idéias,

 é a liberdade de forma  -

o que para ele é

a liberdade para modificar o corpo.

BIBLIOGRAFIA

DAMÁSIO, A. O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

DAMÁSIO, A. O Mistério da Consciência.  São Paulo:  Companhia das Letras, 2000.

LÉVY, P. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola, 1998.

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MATURANA, H., VARELA, F. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. São Paulo: PSY, 1995.

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MATURANA, H. Da Biologia à Psicologia. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.

MATURANA, H. Emoções e Linguagem na Educação e na Política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.

PRETTO, N. Uma escola sem/com futuro. São Paulo: Papirus, 1996.